Crônica do dia: SOPA DE GIBIS.

O que uma criança não faz para conseguir a bola desejada? Ou um brinquedo ambicionado?
Faz de tudo.
Eu também fiz.
Mas meu objeto de adoração, ambicionado, almejado, desejado, não era um brinquedo, em certa hora da minha vida. O que eu queria mesmo era o último número do gibi que acabara de chegar à banca de jornal.
Eu já possuía muitas revistas de quadrinhos.
Mas já tinha lido todas. Várias vezes. Conhecia suas histórias de cor e salteadas.
E as editoras teimavam em colocar mais gibis na banca, que naquele tempo era só uma, na velha estação da estrada de ferro.
Papai me dava uma mesadinha que permitia comprar uma ou duas revistas. Minha avó colaborava com mais alguma coisa. Mas havia outras revistas novas. E meu dinheirinho não dava para todas que eu queria.
E como ficaria minha coleção?
Eu era muito pequeno para trabalhar e ganhar meu dinheirinho. Afinal, ainda cursava o primário.
Mas tinha que haver uma solução.
E de tanto me angustiar com a perspectiva de perder aqueles maravilhosos gibis, tive uma idéia para um plano arriscado e não exatamente honesto. E pus mãos à obra.
Peguei uma folha de papel almaço, bem limpinha, bonita, e “desenhei” com letra de professora um cabeçalho onde se lia “colabore com a sopa escolar”. E um subtítulo: “qualquer quantia será bem-vinda !”
Embaixo, nas linhas, quem “colaborasse” com a tal sopa colocaria seu nome e a quantia oferecida.
Mas quem colocaria os guizos no gato? Eu “inventei” o plano mas não tinha coragem de encarar o público.
Chamei minha irmãzinha Maura. Um mimo de menininha. Loirinha, tipo Shirley Temple. Esperta e falante como ela só.
Expliquei para ela detalhadamente como deveria solicitar as doações e ela nem pensou duas vezes. Já saiu atrás dos “doadores”.
Nesse tempo, eu estava passando as férias na casa da minha avó, que ficava atrás do Convento do Carmo. A rua era movimentada, passagem de muita gente que vinha de bairros distantes em direção à cidade. Estava fácil para a Maura.
Enquanto ela abordava os passantes, eu ficava lá dentro da casa, atrás da cortina da janela, espiando.
E em pouco tempo ela preencheu as linhas todas, com nomes de passantes, até completarmos a quantia que eu precisava para comprar os gibis. E voamos para o jornaleiro.
Pouco tempo depois já estávamos na sala da vó Dita lendo as revistinhas novas.
Eu lendo, a Maura vendo. Ela ainda não sabia ler. Quando os olhos de lince da minha avó passaram por nós e desconfiaram de alguma coisa.
“De quem são essas revistas?”, perguntou firme.
Eu gelei, pra variar. Quando minha avó me pegava numa traquinagem, eu não sabia onde enfiar a cara. E nem adiantava tentar mentir. Ela adivinhava tudo!
Confessei o que fizéramos, e ela ficou desesperada, e envergonhada, além de muito braba.
Como seus netos, educados dentro de todos os preceitos de honestidade, poderiam ter aprontado aquela falcatrua?
Verificou o montante arrecadado, tirou igual quantia do seu potinho de economias e nos mandou de volta à rua para devolver o dinheiro aos legítimos donos.
Mas como obedecê-la? Nem conhecíamos quem tinha passado na rua e dado o dinheiro.
Só havia um que era conhecido e fizera maior doação: o vizinho nhô Nito Machado, justamente o senhorio da minha avó, dono da casa que ela alugava.
Esse, minha avó nos obrigou a reembolsar. Demos a ele uma explicação meio confusa, com vergonha. Ele não entendeu nada mas pegou o dinheiro de volta.
Os restantes “colaboradores” ficaram no prejuízo.
Mas durante muito tempo eu ouvia o que queria e o que não queria da vó Dita por causa dessa armação. Ela permanecia envergonhada.
E de tanto ela falar, eu também fiquei.
Felizmente, só pra compensar um pouquinho, ela não rasgou os gibis.
E passou a me ajudar mais um pouco na mesada... pra eu nunca mais pensar em “planos infalíveis” para comprar gibis.
Mauricio de Sousa,
pai da Turma da Mônica
26.09.97


Postagens mais visitadas